CHEGOU!!! CRÔNICAS & RABISCOS, em março, grande lançamento! Crônicas de humor, edição ilustrada

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Psiu Kólogo, o barman

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Básico

(Óscar Fuchs)

Num daqueles inevitáveis e freqüentes acasos, a querida companheira e eu conhecemos um casal numa festinha de aniversário de criança. Para quem se lembra um pouco da teoria dos conjuntos nas aulas de matemática, festa de aniversário de criança é a intersecção entre dois conjuntos, é o ponto em que dois mundos diferentes têm uma única particularidade e ali se combinam, se assemelham. Assim, pessoas que nunca se viram e que em nada se relacionaram umas com as outras até ali, de repente têm a particularidade de serem amigos dos pais da criança que está de aniversário. Filosofada, sentei e dei aquela filosofada. Cadê o papel... cadê o papel...

Daquela vez até o pequeno aniversariante era uma incógnita para nós, porque também soe acontecer de os pais convidarem amigos seus quando a festa é da criança, numa apropriação indébita da data e do carisma da criança para uso próprio. E acaba sendo um evento exibicionista, com muita cerveja, churrasco, piadas sujas, gargalhadas tonitruantes e passos cambaleantes na ida ao banheiro. Tudo isso numa inocente festinha infantil.

Como disse, o acaso é inevitável: conhece-se pessoas que de uma hora para outra tornam-se íntimos e faz-se planos em grupo para os próximos dias, semanas, meses e já fica combinada uma viagem fretada para o nordeste no ano que vem.

“Para os próximos dias”, porém, ficou combinado um churrasco dominical na casa à beira mar de um casal que encontramos na intersecção de nossos mundos. Entre as combinações que sempre se faz nessas horas está o “me liga quando estiver a caminho que eu vou te dizendo como chegar lá”.

No domingo do churrasco saímos de casa em roupas informais: chinelo de dedos, short com sunga e biquíni por baixo, camiseta regata, blusa de alcinha, roupa típica de praia. Entramos em nosso carrinho popular e rumamos para o fraterno encontro com os amigos recém conhecidos.

Na primeira bifurcação da estrada já fizemos a primeira parada e a primeira ligação. Calor do Kalahari e nós ali, dentro do um ponto zero sem ar condicionado, tentando ligar para um telefone que só dava caixa postal. Esquerda ou direita? Finalmente atenderam e nos orientaram:

— Pegue a estrada da esquerda e siga em frente até a Costa Rica. Quando chegar lá ligue de novo.

— Costa Rica — brincamos eu e a querida companheira —, acho que vamos até a América Central.

— Bairro Costa Rica. — Leu ela numa placa com uma seta apontando em frente. — Imagina um bairro com esse nome. Só pode ser de granfino. — Rimos.

E era. Chegamos ao bairro Costa Rica e só havia belas casas, carros importados, gente com roupa de grife, até os cachorros eram meio petulantes. Imagine como seria esse churrasco! A querida companheira olhou-me com minha regata puída e ordenou:

— Pare aqui. Vamos comprar uma camiseta pra você.

— Mas...

— Vamos, vamos! Não vamos chegar lá nesses trapos, parecendo dois molambos.

Ainda que contrariado tive que partilhar da apreensão e fomos a uma lojinha onde ela escolheu uma camiseta pra mim.

— E você? — Perguntei.

— O que tem eu?

— Essa sua blusinha já tem uns dois verões nas costas... e na frente também.

— Tem razão.

Desceu a prateleira de blusinhas e escolheu uma mais “chiquezinha”.

Devidamente vestidos para a ocasião, partimos outra vez. Até nos perdermos outra vez. Ligamos outra vez:

— Daí onde estão sigam até a última rua. Entrem à esquerda e venham cuidando as placas. Entrem quando virem uma placa dizendo Praia da Nobreza.

Agradecemos e seguimos satisfeitos por termos nos arrumado um pouco, afinal íamos para a Praia da Nobreza. O que haveria lá, condes? Barões? Continuamos em direção à corte palaciana, rindo e já nos achando ridículos. Quando chegamos à Praia da Nobreza era exatamente o que cogitáramos: nobre. Restaurantes finíssimos, hotéis que mais pareciam palácios com seus campos de golfe e boutiques de marcas internacionais que só se vê em lugares como aquele.

Nos olhamos outra vez e tomei a iniciativa:

— Uma bermuda. Preciso de uma bermuda decente.

— E eu de um shortinho melhor que essa calça jeans recortada nas pernas e desfiada.

Foi uma grana. Mas eu nunca tive uma bermuda dessas, eu merecia. O shortinho com o tridente do Club Med saiu os tubos. Pelo menos a gente ia fazer bonito. Feitas as compras, ligamos de novo e nos orientaram:

— Todos conhecem. Perguntem a alguém como fazem para pegar o Caminho do Rei.

No Caminho do Rei, mansões de cartão postal, castelos estilizados, cascatas artificiais, jardins de Versalhes, fontes jorrantes e um tênis cheio de amortecedores pra mim, uma sandália com detalhes para ela. Coisa fina, até porque não encontramos nada mais barato. Cheiro de “tudo novo”, mais uma ligação. Mandaram seguir para o Beco dos Milionários. Aquilo, básico: jetskis, lanchas, piscinas quase do tamanho do oceano, quadras de tênis.

Quando nos demos conta de que estávamos a procura de uma loja que alugasse traje completo e um vestido claro, com alguns brilhos, para uma ocasião de gala, diurna, ligamos inventando um imprevisto e pedindo desculpas por não podermos comparecer.

— Mas vocês já estão tão perto!

Deu vontade de dizer que meu iate estava pegando fogo, mas apenas me desculpei e voltamos para casa. Com meu chinelo de dedos e meu calção velho assisti por computador as imagens que um dos convidados enviava on line, num desses programas de computador que se pode ver as pessoas do outro lado. Andava com a câmera pela piscina, pela churrasqueira, a praia ao fundo... todos de sunga, biquíni e chinelo de dedos. Deu até para ver, de passagem, uma bermuda batida e uma regata amarelada pendurados num cabo de vassoura.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Psiu Kólogo, o barman

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Cinco Estrelas

(Óscar Fuchs)

Na recepção do hotel:
— Boa tarde.
— Boa tarde, senhor. Posso ajudá-lo?
— Tem quarto?
— Tenho um no subúrbio, mas quero alugar um aqui no centro. O senhor sabe de algum desocupado?
— Eu quero saber se tem quarto no hotel.
— Ah, no hotel? Cento e vinte e um.
— É o número?
— Não, a quantidade.
— Quantidade de que?
— De quartos.
— E desses cento e vinte e um, tem algum desocupado?
— Dezesseis.
— É a quantidade?
— Não, é o número.
— Seria possível ver o quarto?
— Claro. Só um minuto, já volto.
Dez minutos depois:
— Pô, que demora!
— Desculpe, senhor.
— Foi tão difícil assim encontrar a chave?
— O senhor não pediu para dar uma olhadinha no quarto? Eu fui.
— Devo estar falando grego...
— Interessante, na Grécia vocês falam português e chamam de grego!
— E como é este quarto?
— Quatro paredes, chão, teto...
— Quero saber o que tem nele!
— Bem, a direção do hotel achou por bem colocar uma cama. Também achei uma atitude correta, pois quem procura um hotel quer descansar e....
— Por favor, o que mais além da cama?
— Banheiro.
— E além do banheiro?
— Aquelas coisas de sempre: criado mudo, poltrona, dois roupeiros...
— Dois roupeiros?
— Sim. Um no quarto e outro no banheiro.
— Para que roupeiro no banheiro?
— Sabe como é, essas inovações gregas ainda não chegaram por aqui.
— Eu não sou grego!
— Oh, queira desculpar. É melhor não saberem que o senhor é turista, com todos esses assaltos.
— Não sou turista! Por favor, responda apenas “sim” ou “não”.
— Sim.
— Tem ar condicionado?
— Sim.
— Telefone?
— 5221-2138, é o número do hotel. Já o meu é...
— Só quero saber se tem telefone no quarto!
— Ah, sim. E com uma campanhinha que faz trim-trim. Na Grécia os telefones também fazem trim-trim?
— Pelo amor de Deus! Esqueça Grécia, esqueça turista!!!
— O senhor parece bem irritado. Deve ser o cansaço da viagem. Realmente, uma viagem da Grécia até aqui deve levar horas.
— Agora você acertou. Estou irritado e cansado!
— Estou percebendo. Minha sugestão é que procure um hotel e descanse um pouco. O senhor se sentiria melhor.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Psiu Kólogo, o barman

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Êxodo e Refluxo

(Óscar Fuchs)

Num restaurante de beira-de-estrada dois homens de meia-idade conversam sentados ao balcão com seus cafezinhos pós-almoço. Depois de tantos hífens, um pede ao outro:


— Pode me alcançar o adoçante?

— Só se você me alcançar o açúcar. — Diz o outro com um sorriso amistoso

— Pois não. — Alcançando o açúcar. — Abandonei o açúcar.

— E eu abandonei o adoçante. — Diz o outro alcançando o adoçante.

Os dois provaram do café e o do açúcar comenta:

— Daqui pra diante vai ser só açúcar, carne gorda, ovo, tudo que sempre tive que evitar.

— É mesmo? Por quê?

— Trabalhei trinta anos e quase morri de stress. Era caspa, gastrite, refluxo e, por último, um ataque cardíaco. Meu médico sempre dizia que eu deveria abandonar tudo: o trânsito da cidade, a pressão da empresa, tudo. Agora, finalmente, vendi o pouco que tinha e comprei uma fazendola no interior. Só ficou esse carro aí na frente.

— E você vai viver de quê?

— Sei lá! Plantar, criar uns bichos, enfim, viver! — Diz entusiasmado, erguendo as mãos para o céu.

— Pois eu, meu amigo, também estou indo para uma nova vida. — Diz o do adoçante.

— Ah, sim?

— Estou começando a me adaptar. Agora vou querer um emprego que me pague o suficiente todo final de mês, que eu não tenha que me preocupar com salários de empregados, com impostos, se a produção vai ser boa ou não, etc. Ah, e adoçante, dieta equilibrada e tranquilidade! – Concluiu numa risada.

Depois de limpar as lágrimas de tanto rir, o do açúcar pergunta:

— Mas, o que você fazia?

— Eu tinha uma fazendola no interior.

Os dois ficam pensativos mexendo as colherinhas nas xícaras. Até que o do açúcar pergunta:

— Você vai na sobremesa?

— Só se for diet.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Imprudência

(Óscar Fuchs)
Tenho orgulho de ser um daqueles homens que fazem várias tarefas caseiras, dividindo-as com a querida companheira. A querida companheira, no entanto, às vezes exige demais de um pobre e incompetente homem do lar. A ver: aqui no harmonioso lar aproveitamos rotos panos de prato e puídas toalhas de rosto como pano de chão. Creio que isso acontece em todos os lares.
— Lavou esses panos todos juntos? — Perguntou a querida companheira ao ver-me retirando-os da máquina.

— Sim. — Respondi.

— Os panos de prato misturados com pano de chão?

Analisei os panos e não consegui diferenciá-los. Então, depois da detida e atenciosa análise, perguntei:

— Tem algum pano de prato aqui no meio?

Ela deu um suspiro de impaciência e apontou-os:

Todos são panos de prato.

— Ãhnnnnnnn! — Proferi majestosamente, expressando minha total compreensão e entendimento.

Com a ponta dos dedos, do meio daquela bola de panos úmidos ela pinçou um deles, levantou-o à altura dos meus olhos e revelou:

— Menos esse.

Fiquei chocado. Como, entre tantos panos de chão...

— De prato. — Corrigiu-me professoral.

Isso. Como, entre tantos panos de prato, conseguiu distinguir o único pano que não era?

— Que não era o que? — Perguntou-me

— Que não era... — mordi os lábios com temor ante tão decisiva resposta. Minha capacidade, meu cérebro, minha inteligência e percepção como ser humano estavam em jogo. — Que não era... que não era... de chão?

— De prato. — Corrigiu-me.

Putz! Errei de novo. Mas continuei:

— Isso! Como conseguiu distingui-los?

Pegou o pano de chão — ou o pano de prato, já não sei mais — e o estendeu sobre a máquina. Em seguida pegou o pano de prato — ou pano de chão — e estendeu ao lado do outro.

— Não vê a diferença? — Perguntou cruzando os braços.

Deixe-me ver: pano azul, um vaso de flores no centro, muitas flores coloridas. O outro... pano azul, vaso de flores, muitas flores coloridas. Temendo uma repreensão pela falta crônica de atenção, respondi:

— Na verdade — incorporei um Hercule Poirot, analítico e detalhista —, os vasos parecem ter uma pequena diferença.

— Errado. Entre as flores desse vaso, olhe aqui, há uma pequena buganvile. No outro não há nenhuma buganvile.

Incrível! Como não percebi? Estava literalmente estampado na minha cara! Estou vendo agora: uma florzinha do tamanho de um pingo d’água encoberta por outra, ligeiramente vermelha e meio assombreada...

— Isso é uma flor mesmo? — Perguntei ainda não acreditando na minha cegueira irreversível.

Ela apenas balançou a cabeça num paciencioso sim. Segundo ela, não se pode lavar panos de chão com panos de prato porque as coisas sujas, como ela diz, se transferem de uns para os outros. Então eu cometi o erro fatal, o atentado ameaçador, a agressão imperdoável para qualquer mulher: usei a lógica.

Sem qualquer intenção de ferir ou de apelar, apenas perguntei com inocência:

— Mas, se os dois panos são lavados, não é para os dois ficarem limpos? E se ambos estão limpos, como podem sujar um ao outro?

Daqui a uma semana, quando a querida companheira voltar mais calma da casa da mãe, pedirei desculpas pela imprudência.

domingo, 26 de setembro de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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A Revolta das Palavras

(Óscar Fuchs)

Como sempre, foi entre os pequenos que tudo começou. As monossilábicas foram as primeiras. Em assembléia, ante , , , , se e , entre outras, proferiu o primeiro discurso de repúdio ao sistema ortográfico e gramatical.

— Além de sermos as mais insignificantes, as que ocupam menos espaço, — Discursou — estamos sempre por baixo!

— E quando não estamos por baixo — Aparteou — damos uma flutuada pela atmosfera literária e acabamos abandonadas no solo da gramática!

Todas bateram acentos. Depois dos aplausos decidiram iniciar uma revolta. A palavra propaganda aderiu à revolução disseminando as idéias dos revoltosos. A adesão da palavra sim foi considerada muito positiva. Mas a mais festejada foi a adesão da palavra lei, pois, a partir daí, as revoltosas estavam com a lei ao lado delas. Mentira, em comissão com aleivosia e falácia, expôs o motivo principal da revolução:

— Temos que acabar com isso. Estão deturpando nossos sentidos, usam-nos para os mais condenáveis fins e, sempre, indevidamente. Tudo é mentira! Mentira! Mentira! — E logo depois de sua oratória deixou de ser mentira porque, já disseram, “uma mentira repetida várias vezes pode se tornar verdade”.

Paroxítonas e proparoxítonas passaram a freqüentar as reuniões. Turista, cabulador, ausente e esporádico não compareciam muito às assembléias, mas quando vinham a sala ficava cheia e apertada. Então aconteciam os acidentes:

— Você viu meu circunflexo por aí? — Perguntava atônito, atônito.

Escritores, jornalistas, poetas, estudantes e todos os que usavam as palavras passaram a sentir o efeito da revolta: se tentavam escrever, por exemplo, abacaxi, saía goiaba.

Jornais e revistas foram considerados os objetivos primordiais da revolução. A manchete d’O Globo, certa vez, foi uma declaração do presidente dos Estados Unidos: O Bin Laden é um amor.

Também a fala começou a ser afetada:

— O presidente dos Estados Unidos Chineses, Evo Morales, reuniu o parlamento britânico e exigiu... mas, o que é isso?— Disse o locutor no noticiário da TV.

Uma Babel! Depois de espalhada a revolta quem lesse a bíblia não sabia se era pecado desejar a mulher do próximo ou comer maçã logo depois do casamento. Livros de Marx passaram a defender radicalmente o capitalismo selvagem e, nos tratados de medicina, o estômago foi deslocado para o calcanhar.

A revolução chegou aos bancos e agências financeiras. Quem tinha saldo negativo passou a ter saldo positivo e vice-versa. As medidas da equipe econômica do governo saíam totalmente distorcidas, sem nexo. O interessante é que economia passou a dar bons resultados!

A revolta começou a invadir textos de editoriais e de cronistas, fazendo-os cataclismos práxis Vilela. Contrário mindinho, só signos Hugo Chaves ou Chico Buarque de Alemanha. Pré pós-cartesiano mar chiov deupil fretic hj otumijdim hueuiapjf...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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O Anjo

(Óscar Fuchs)

Reencontrei meu ex-vizinho, Jorge, a quem passei a chamar de minha memória externa E.X.T., porque ele vive me relembrando coisas de nossa época infante e adolescente. Jorge puxa um fiozinho e lá vêm outras centenas de memórias se arrastando até meu cérebro que eu pensava já estar inválido, numa cabeça de rodas.

Há poucos anos meu sobrinho perguntou-me o que é nostalgia. Respondi que ele só saberia o que é nostalgia quando tivesse vivido o bastante para saber o que é nostalgia. Ao encontrar o Jorge me deu nostalgia. Sinal de que já vivi bastante, talvez demais. Meus quinze ou dezesseis anos foram naquela época em que havia apenas a palavra adolescência para designar quem tinha entre quinze e dezoito. Antes dessa idade ainda era criança. Agora temos pré-adolescentes, adolescentes, início da idade adulta.

Também na minha adolescência — o que seria hoje a pré-adolescência — a gente brincava mais que assaltava, consumia escondido bala e pirulito ao invés de crack, tomava emprestado carrinho de lomba ao invés de roubar automóveis... mas tudo isso foi lá no século XX.

O bairro Petrópolis ainda era chamado de fim-da-linha. O sonho de qualquer um de nós, Jorge, eu e outros adolescentes era poder entrar no Cine Ritz para assistir a um filme proibido para menores de dezoito anos. Certa vez o padre da Igreja São Sebastião, defronte ao Cine Ritz, queixou-se aos vizinhos:

— É uma vergonha! Aqueles cartazes de cinema com mulheres seminuas! Imagina devotos saindo da igreja depois do culto verem aquilo, esquecem todo o sermão! — Reclamou.

Então meu irmão mais velho rebateu:

— Pois é, padre. Mas imagina o sentimento de culpa de quem está saindo do cinema e dá de cara com a sua enorme igreja.

O padre sorriu e saiu vibrando com a assertiva.

Só que isso aqui não é uma resenha nostálgica e sim uma homenagem tardia. Apenas contei tudo isso para situar a época e o local.

No que chamávamos de fim-da-linha — Petrópolis —, todos conheciam a Livraria e Papelaria Louvre, ao lado da igreja, onde eu era balconista. No Louvre eu lia todos os lançamentos. Os livros vinham envoltos em plástico para que não fossem manuseados e folheados. Hoje eu posso confessar, pois o crime já expirou: eu tirava com todo cuidado o plástico dos livros, lia, depois recolocava o plástico e os punha de volta na prateleira. Ninguém desconfiava! Assim descobri Garcia Marquez, Humberto Eco, Kafka, Nitsche, Verissimos, João Ubaldo, Rubem Fonseca, Millôr e tantos outros que ainda nem entendia direito e nem há espaço para citar. Lendo aquelas maravilhas pensei que eu também teria coisas para contar e tive o sentimento de escrever as poucas coisas que um menino teria para escrever.

Havia no Louvre — a livraria, que hoje também poderia ser museu — uma máquina de escrever — que já é peça de museu. Papel ofício era o que não faltava e, tempo, eu teria entre um freguês e outro. Levei a máquina de escrever para trás de uma estante e passava horas e dias tlec-tlec-tlec no intervalo entre o atendimento aos clientes.

Certo dia estava eu a tlec-tlec-tlec lá no fundo da loja quando entrou uma senhorinha com seus cabelinhos brancos e uma sombrinha fechada na mão. Foi recebida com deferência por meu irmão mais velho. Na mesma hora saí correndo de meu escritório para atendê-la, mas meu irmão fez um gesto com a mão dizendo deixa que eu atendo. Fiquei feliz por poder voltar a minha crônica sem ter o raciocínio interrompido.

A simpática senhorinha já estava com seu pacote de folhas pautadas, lápis e outras coisas que não lembro, quando perguntou quem tanto teclava no fundo da loja.

— Meu irmão. — respondeu ele.

— E o que ele escreve? — quis saber ela.

— Não sei, nunca vi.

— Posso falar com ele? — pediu.

Então ela se encaminhou até o fundo da loja e me deu um Olá!

— O que estás escrevendo? — perguntou-me.

Totalmente sem jeito e intimidado, envergonhado de minha pretensão de escrever alguma coisa, respondi dispersivo:

— Ah, umas coisas.

Para meu desespero, na iminência de que alguém veria meus escritos secretos e pretensiosos, ela pediu:

— Posso ver?

Sem alternativa ante a simpatia, a amabilidade e a candura dessa mulher, peguei reticente algumas coisas que havia escrito e lhe entreguei. A senhorinha passou os olhos por minutos e pediu de um jeito que era impossível dizer não:

— Posso levar para ler melhor?

Como negar? Coloquei em um envelope pardo e entreguei a ela. Agradeceu, despediu-se e se foi.

Alguns dias depois ela retornou. Veio direto a mim, parou à minha frente, tirou meus escritos do envelope e me entregou. Estavam todos rabiscados a lápis, com sinais ininteligíveis, palavras riscadas e anotações nas margens do tipo: Não escreva whisky como é no original. Está correto, mas uísque fica mais coloquial. E explicou:

— Está muito bom. Fiz algumas anotações e correções. Mas deves continuar, continua escrevendo e lendo muito. — Falava assim, usando o tu como pronome.

Para desespero de vocês segui o conselho, continuei escrevendo. E lendo. Hoje, mesmo que isso não me renda nada, mesmo que seja difícil tentar alegrar a todos, mesmo que o politicamente correto me impeça de dizer um monte de coisas, mesmo que não seja bem feito, faço e o faço só porque gosto.

Porém, se vocês sentem-se constrangidos ao ver meus erros ou pensam que é um desperdício de tempo eu continuar tentando, não culpem a senhorinha, pois ela estava apenas exercendo sua função de Anjo. “Esse anjo” — como se refere a ela Lya Luft — passou pela minha vida — ainda está! — e me ensinou que passar conhecimento, ajudar, ser simples, dar-se, é o que faz as pessoas sentirem gratidão e nostalgia quando pensam em nós. Foi o que senti, gratidão e nostalgia, quando minha memória externa E.X.T. me fez pensar nessa senhorinha chamada Dona Mafalda Verissimo*.



*Quem foi Mafalda Verissimo: Mafalda Halfen Volpe Verissimo, viúva do escritor Erico Verissimo, mãe de Clarissa e do escritor (N.A.: também jornalista) e cronista Luís Fernando Verissimo, nasceu em Pelotas no dia 18 de junho de 1913, filha de Vicente e de Emma Halfen Volpe. Tinha nove anos quando a família se mudou para Cruz Alta e nesta cidade conheceu Érico, com quem se casou e passou a viver em Porto Alegre. Adendum posterior: esqueci de dizer que Dona Mafalda fora professora... típico de um anjo, não?

terça-feira, 24 de agosto de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Depoimento

(Óscar Fuchs)

O policial me pegou pelo braço e foi me levando. Conduziu-me até a mesa do delegado e me empurrou para que sentasse na cadeira defronte à escrivaninha. Esperei que o policial saísse, cruzei os braços sobre a mesa do delegado e comecei a falar.

— Muito bem, senhor delegado. Não importa o que lhe disseram ou deixaram de dizer, o que aconteceu foi o seguinte: eu não vinha em alta velocidade, apenas oitenta quilômetros por hora. Eu sei, eu sei que estava no centro da cidade, mas isso não vem ao caso. Como ia dizendo, eu vinha vagarosamente e cheguei ao ponto em que aquele imbecil do fiscal de trânsito me parou. Cruzamento? Que cruzamento? Não vi cruzamento nenhum, não senhor. Placa avisando? Semáforo? Por favor, então o senhor acha que eu não veria uma placa? Um semáforo? E o que é pior, está insinuando que não vi nem o cruzamento? Não havia nada disso! O que? O agente de trânsito disse isso? Ele falou isso? E só porque aquele imbecil passou seis horas fazendo plantão numa esquina que não existe o senhor prefere acreditar nele a acreditar em mim?

Respirei fundo, inconformado com a injustiça e continuei:

— A verdade é que se havia semáforo, devia estar escondido nos ramos daquela árvore no canteiro central. O que? Aquilo não é árvore? Claro que é, doutor. O senhor acha que não conheço uma árvore quando vejo uma? Pensa que fui criado onde, no deserto do Sahara? Na frente da minha casa mesmo tinha uma e eu vivia trepando nela. Anos depois minha mãe contratou uma empregada e eu parei de trepar na árvore. Conheço uma árvore de longe, já bati numas vinte, pelo menos. Como? O senhor quer dizer que aquilo não era um tronco de árvore, mas o poste do semáforo que não vi? Ah, mas isso aqui ta parecendo brincadeira. Pede um cafezinho pra mim, doutor.

Tomei fôlego para continuar:

— Onde eu estava? Ah, sim. Então o agente de trânsito mandou que eu parasse e... Hein? Desacato a autoridade? Aquele idiota, filho de uma mula disse que o desacatei? Só porque mandei ele enfiar a caneta... Murro na cara? Eu dei um murro na cara dele? Não, doutor, isso não. Nunca. Jamais. Posso até ter dado um chute entre as pernas daquele safado, mas só isso. Até porque ele queria me multar porque eu vinha a oitenta por hora, porque passei o sinal fechado, porque atropelei uma velhinha. Ah, não foi uma? Foram quatro? Vai ver era saída da missa! Para finalizar, doutor, não cometi nenhuma infração de trânsito.

Terminei minha argumentação e recostei-me calmamente na cadeira. Porém, o delegado entrou na sala, sentou-se na poltrona que estava vazia ali na minha frente e me lançou um olhar tão ameaçador que confessei tudo.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

METENDO A MÃO

Indecisos

O amigo Jorge — minha memória externa E.X.T. —, entre tudo o que guarda de nossa vizinhança infante e adolescente, lembrou-me das bancas de revista e papelarias de nosso tempo:

— A gente parava na frente de uma prateleira indeciso de qual revista levar. — Disse.

Primeiro parágrafo muito longo, isso não é recomendável. Mas vou deixar assim.

Tínhamos, então, jornais muito mais, digamos, “saudáveis”. Das revistas semanais havia as “a favor” e as “contra”. A favor e contra qualquer coisa, afinal tínhamos dois lados para tudo e, no mais das vezes, por pura ideologia — coisa que também existia àquela época.

Não seria best seller a Bruna Surfistinha como autora. Livros assim ficavam meio relegados, recebendo o valor que realmente tinham. Havia best seller, sim! Mas com alguma qualidade. E recém-lançados, muitos recém-lançados.

Pegue-se qualquer revista semanal atual e todas serão iguais, todas alardeiam os mesmos pontos de vista e todas excluem de suas páginas os discordantes. Sem contar que 70% da revista é anúncio, exortando o modelo “tudo por dinheiro”.

Revistas mensais... deixa eu pensar... existe alguma? As revistas mensais eram voltadas à cultura, às artes, a matérias e reportagens mais atemporais. Enfim, podia-se cantar /Quem lê tanta notícia?/, como Caetano, pois na época havia diversificadas notícias.

Continuamos indecisos defronte à prateleira, batendo a ponta do indicador nos lábios enquanto murmuramos:

— Qual a menos ruim...qual a menos ruim...

Alguns amigos e eu pensamos, há algum tempo, em lançar uma revista só com duas páginas. Abortamos o projeto porque temíamos que a Caras nos acusasse de plágio. Qualquer possibilidade de uma boa publicação, hoje, é bem remota e as que vemos são iniciativas isoladas e de pouca tiragem, dispersas por livrarias especializadas ou naquela pequena cafeteria, daquela galeria, lá naquele bairro.

Agora estão lançando mais uma revista de fofocas de celebridades, igual a todas as outras trinta revistas de celebridades que fazem de qualquer bunduda uma celebridade. E, parafraseando Caetano, quem lê tanta não notícia?

Mas modernidade também traz alternativas. Esse blog, por exemplo. Ou diversos outros de pessoas mais talentosas que eu, escrevendo aquilo que acham que deve ser dito, sem policiamentos, sem censuras financeiras e com diversos prismas. Aqui, espero que você, pelo menos, se divirta. Afinal, ridendus castigat mores.

Só que aí eu sento, fico pensando e dou aquela filosofada: quantos acessos tem o blog da Surfistinha? E quantos acessos têm os blogs dessas pessoas mais talentosas e interessantes? É discussão antiga, mas voltemos a ela: é o povo que não está interessado em coisas talentosas e interessantes, ou é a mídia que força a barra para que o povo prefira revista de celebridades, blog de Surfistinha, etc, etc et al? Cadê o papel...cadê o papel...

Uma coisa é certa: aquele talento enorme e bem desenhado que a Bruna Surfistinha tem por trás dela faz a diferença.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Alergia! Alergia!

(Óscar Fuchs)
"Caminhando contra o vento/ Sem lenço, sem documento/ No sol de quase dezembro..." Quatro e trinta e oito da manhã e não consigo dormir pensando numa crônica que desejo escrever sobre alergias. Li sobre alergias há algum tempo e soube que as há de todos os tipos e de infinitas origens. Algumas terríveis, algumas suaves, outras curiosas, não fosse a tragicomicidade.

Só com a palavra “tragicomicidade” escrevi um quinto da crônica. Escrita duas vezes, já estou quase a um terço. Voltando às alergias, tenho alergia a sol. Por isso o parágrafo inicial de Alegria! Alegria!, do Caetano. Isso mesmo, tenho alergia a sol. Minha opção é sempre pelo campo à praia. Quando e se vou à praia fico sob o guarda-sol, de camiseta de algodão, com um chapelão de palha de fazer inveja a mexicano, todo untado de protetor solar fator “infinito” e, ainda assim, ao chegar em casa e depois de uma chuveirada aparecem as centenas de bolinhas aquosas. Na consulta a uma dermatologista soube da causa de meu mal, o sol. E a doutora comentou, estendendo o lábio inferior e franzindo a testa:

- Você tem muita sorte.

- Sorte? – Perguntei imaginando que ela estivesse brincando.

- É – confirmou -, muita sorte.

Protestei:

- Como posso ter sorte de ser alérgico ao sol? De não poder tirar a camisa nem num bate-bola de fim-de-semana?

Depois de tantos hífens acumulados em apenas duas expressões, ela explicou:

- A maioria das pessoas não percebe que o sol em excesso faz mal, ficam se fritando à beira da praia e só vão descobrir uma doença grave quando já é tarde. Com você isso não acontece porque, qualquer pequena agressão, sua pele já reage.

Indo por esse caminho, pensei o quanto seria bom se todos os médicos nos falassem desse jeito. Meu gastro:

- Você tem muita sorte de ter uma úlcera nervosa, assim você sabe que não deve se estressar.

Meu oftalmo:

- Você tem muita sorte de sofrer enxaquecas terríveis, assim você sabe que está na hora de trocar as lentes dos óculos.

Meu otorrino:

- Você tem muita sorte de ter adenóide. Apesar de dificultar sua respiração, também o livra de inalar milhões de germes, bactérias e vírus que estão no ar.

Sempre boas notícias! Mas a alergia mais curiosa que conheci foi a de uma caixa de banco. Cheguei ao guichê e estava ela trabalhando com luvas de látex. Aliás, minha mulher tem alergia a luvas de látex. Pois bem, não me contive e perguntei por que ela usava aquelas luvas.

- Alergia a dinheiro. - Respondeu.

- Alergia a dinheiro? – Perguntei impressionado. – E você trabalha como caixa de banco, com dinheiro!

- Pois é – disse ela com um sorrisinho conformado -, pra ver como é a vida.

Não consigo perder piada, então soltei:

- Alergia a dinheiro... Você é a mulher perfeita, quero casar com você!

A moça mostrou ser mais engraçada que eu:

- Então saiba que não sou alérgica a cartão de crédito.

Perdi dessa vez, mas me diverti muito.

Cinco e quarenta da madrugada. Já sei que quando o despertador tocar vou acordar com aquela alergia de sair da cama. Boa noite.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Bum!

(Óscar Fuchs)
Às vezes eu sento, começo a pensar e dou aquela filosofada. Antes me certifico de que o papel higiênico esteja por perto. A última filosofada foi essa: a relação entre teoria e prática.

É difícil passar da teoria à prática. Aquele espaço entre a euforia da concepção da idéia e a da sua realização material; entre a forma abstrata que alguma coisa tomou no cérebro do gênio e a sua forma sólida, visível, palpável.

Por exemplo, os pais da Leandra Leal tiveram a idéia de ter uma filha e passaram da teoria à prática. Hoje ela é competente, é linda, centrada, consciente, madura e, além de tudo, super sensual. É uma forma sólida, visível e palpável. Se ela gosta ou não de ser apalpada, já é outra coisa.

Vou tentar explicar. Tudo parte de uma idéia original — uma imagem, um estalo, um “click” — que provoca a primeira euforia. Quando estiver tudo pronto, materializado e concreto é que virá a segunda euforia, a da idéia acabada... e funcionando bem, como a Leandra.

Muitas vezes tenho uma idéia para uma charge, um cartum, uma estória em quadrinhos, uma crônica. Está tudo montado na minha cabeça, tudo certinho e azeitado, mas quando pego o papel não sai nada.

Vejamos o cientista. Ele teve uma idéia genial e está no laboratório tentando passar da teoria à prática:

— Uma pitada de enxofre, um pouco de nitrogênio, um tubo de... Bum!— Explode o laboratório.

O cientista estava com tudo anotado e estudado: o enxofre, o nitrogênio, o tubo de... e o resto não se sabe porque a fórmula explodiu junto com o cientista e o laboratório. Ele passou anos batendo na mesma tecla, matutando, imaginando, calculando e, finalmente, pensou que tinha chegado à “eureca!”, àquela segunda euforia. Porém, na hora da prática, bum!

Fiz-me entender? Não? Pra ver como é difícil passar da teoria à prática. Cadê o papel.... cadê o papel...

sábado, 26 de junho de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Inoculados

(Óscar Fuchs)
Meu antivírus deu o alerta: mais um inimigo tentando infectar meu computador. Li em algum lugar que há 700 mil vírus espalhados pelo planeta. Quase impossível alguém não receber pelo menos um por mês.

Guardo todos. Criei uma pasta no meu HD que está abarrotada de Brancas de Neve, SirCams, Nimdas e outros. Todos inativos, claro. Estão quietinhos lá, só esperando. Aos amigos que recebem meus e-mails, não se preocupem. Apenas me tratem bem. Aliás, o churrasquinho do próximo domingo, quem é que vai pagar?

Estou precisando de um carro novo. Gostei desse lançamento com quatro air bags, direção hidráulica, ar condicionado... me serve. Ei, psiu! To falando com você aí, da montadora de automóveis. Ta duvidando!? Ta duvidando!? Olha que eu mando um bichinho, hein!?

Oi, chefe! Sobre aquele aumento de salário, vá à minha sala que conversaremos, ta bem? Caramba! Já viu o lucro dos bancos? Deixa ver, um sircam? Um nimda? Basta meu gerente me ligar, dou o número da minha conta e pronto, seus dados estarão salvos. Ah! E no mínimo três dígitos!

Um descontinho personalizado no supermercado também iria bem. Quanto? Podemos discutir, mas que seja razoável, senão meto um vírus que todos os clientes vão ter um desconto personalizado. E posso bagunçar ainda mais: o freguês vai encontrar o absorvente lá no balcão frigorífico.

Enfim, meu computador é uma reserva de pestes do Egito. Quando eu libertar meus bichinhos, nem o Super Homem vai dar conta. Tentem adivinhar por que os Americanos resolveram, de uma hora para outra, aderir ao tratado de Kioto. O que foi que os convenceu, hein? Hein? Hein?

Preparem-se. Aos inimigos, a formatação de seus discos, nada menos! Ãhã, quando abrir minha caixa de Pandora...!

quinta-feira, 17 de junho de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Centrado

(Óscar Fuchs)

A esposa chega em casa aflita:
— Nem sabe. Conheci o Gaspar.
— Gaspar? — Pergunta o marido tirando os olhos do jornal.
— O namorado da nossa filha.
— Ah! Aquele do beisebol.
— Aquele era o Lorca. Esse é o Gaspar.
— Trocou de novo? Só espero que o Gaspar goste de futebol. Com o Lorca nem se podia falar de esportes!
— Perto desse, o Lorca era uma benção.
— O quê, vai dizer que esse aí gosta de hóquei!?
— Não, não...
— Pólo aquático? Pior: pólo a cavalo! Ele só gosta de pólo a cavalo!?
— Não, é que...
— Já estou com saudade da época dos surfistas...
— É verdade.
— Basquete! Lembra daquele do basquete? Dava até pra bater um papo enquanto ele trocava lâmpadas.
— Esse parece ter quarenta anos.
— É mesmo?
— É. Terno e gravata, me cumprimentou educadamente, cordial...
— O que? Não disse “Eaê, sogrona”, nem “Cumé quié, coroa?”, nada disso?
— Não. Deu-me boa-tarde, apertou minha mão...
— Ah, enfim um rapaz centrado!
— Centrado nos quarenta. Ele tem quarenta anos, Hipólito!
— Não exagera, Eugênia. Só porque o rapaz é mais... digamos... sociável.
— Ele não é apenas sociável, Hipólito. Ele tem quarenta anos!
— Força de expressão, Eugênia. Vai ver ele está estudando Direito, trabalha com algum advogado da família, usa terno e gravata, essas coisas...
— Não, Hipólito. Ele tem quarenta anos mesmo!
— O que você quer dizer com... “mesmo”?
— Quero dizer que ele nasceu em 1970.
— 1970? Eu nasci em 70! Aliás, o ano que o Brasil foi tri da copa. Felix, Everaldo, grande Everaldo...
— Presta atenção, Hipólito!
— Só estava recordando. Então ele nasceu em 70?
— Isso mesmo.
— Então ele tem... peraí, deixa eu fazer as contas... quarenta anos!!!
— Exato, gênio.
— Ele tem a minha idade, Eugênia!!!
— Você é um Einstein.
— Mas, a Cristiane só tem dezessete!!!
— Dezesseis e meio.
— O que esse cara quer com a minha filha?
— E divorciado.
— Céus!
— Pois é. O que você me diz agora?
— O que eu digo? O que eu digo? O que eu posso dizer? Só falta ele ser torcedor do Botafogo.

terça-feira, 8 de junho de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Namorados

(Óscar Fuchs)

Imperatore, restaurante, luz de velas, casais jantando.... dia dos namorados. Deixo de lado o Buffet, até por que não sou nenhum gourmet. Analiso as pessoas.

Na mesa ao lado um casal de adolescentes bebendo refrigerante e, apesar da variedade de pratos, o indefectível bife com fritas. A adorada esposa e eu imaginamos aqueles namoradinhos recebendo uma mesada extra para um jantar romântico num restaurante de verdade e, por fim, comerem o mesmo que comem em qualquer fast food todos os dias. Trocaram presentes: um MP4 e um DVD, até onde pude perceber.

Noutra mesa um rapaz bastante glutão, despreocupado, vestindo um casaco daqueles que se usa em futebol e uma touca do Boca Juniors enfiada na cabeça, totalmente desleixado. A moça a seu lado, maquiada, vestida para uma ocasião especial, com luxo impecável, visivelmente irritada e de mau humor. Por quê seria?

A filha de um jovem casal, uma graciosa menininha, corre entre as mesas apontando os outros casais:

— Olha os namolados... quantos namolados! — E coloca as mãozinhas no rosto, fazendo carinha romântica.

Um senhor de idade avançada sorri sem graça quando ela aponta sua mesa. Já a moça a seu lado, exageradamente maquiada, continua séria e profissional.

A menininha chega à mesa onde dois senhores engravatados conversam. Ela aponta para eles e em seguida coloca o dedinho no canto da boca, murmurando:

— ...namolados...namolados... — Intrigada, permanece ao lado da mesa, olhando-os pensativa.

Cara de raivoso, um dos senhores diz entredentes ao outro:

— Putz! Logo hoje você tinha que marcar esse jantar de negócios?

sexta-feira, 28 de maio de 2010

ONOFRE, o novato no campo


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Grávido

(Óscar Fuchs)

Se pudesse escolher alguma mudança em mim, hoje, queria poder engravidar. Eu sei que a população cresce em escala geométrica, enquanto a produção de alimentos cresce em escala aritmética, ou vice-versa, porque sou uma nulidade em matemática e nunca consegui decorar essa Lei de Malthus. Também sei que escola não é barata, que consulta médica não é barata, que fralda não é barata, que a única coisa realmente barata que existe é um inseto de seis pernas... ou serão oito? Enfim, sei de todas as dificuldades de uma gravidez, das dificuldades de um parto e nem quero imaginar o momento da concepção. Já as diferenças fisiológicas e psicológicas entre uma mulher e eu, nem se discute.


Sei, ou percebo, que a mulher deseja a gravidez por um certo instinto ancestral, acentuado pelo modo de criação e pela imposição social desde a infância, quando é induzida a brincar de boneca, de casinha e, algumas vezes, de médico.

Como homem nunca tive esse instinto da procriação. O modo de criação dos meninos era diametralmente inverso ao das meninas, e ainda é, afastando ao máximo das brincadeiras femininas. Jogava futebol para acentuar meu caráter guerreiro, matava passarinho e pescava para firmar minha índole de provedor e brincava de médico com as meninas só por sacanagem mesmo.

Fisiologicamente, já estou sabendo de pesquisas demonstrando que a vida sempre encontra um espaço livre dentro do corpo onde possa se desenvolver. Um espaçozinho qualquer que não esteja sendo utilizado para nada e que poderia ser ocupado pelo feto. Meu crânio, por exemplo, que abriga um cérebro sedentário e reduzido poderia ser uma alternativa. Vamos e venhamos (pago a ida, você paga a volta), eu ficaria ridículo andando por aí com uma cabeça grávida.

Ainda haveria uma terceira dificuldade: a escolha do parceiro. Imagine eu andando por aí tentando identificar um macho forte, de boa cepa, que me garantiria uma cria saudável. Para isso, hoje, existe a inseminação artificial. Dupla inseminação, já que teria que plantar também um óvulo.

Portanto, engravidar é um desejo impossível. O que é uma pena, porque me exclui da chance de fisgar um jogador de futebol, conquistar a fama e uma polpuda pensão mensal. Ou de ter um affair com algum astro do rock e ver meu currículo enriquecido pela repentina capacitação: apresentador de programa de televisão. Ou engravidar de um senador da república, receber um cachê astronômico de uma revista e, talvez, ser rainha de bateria de uma escola de samba.

Mas eu não desisto. Há outras possibilidades de vender-se sem precisar ter talento ou inteligência. Uma delas é uma bunda grande, atraente e rotunda. Já estou fazendo musculação nos glúteos e pesquisando procedimentos para um implante de silicone. Se tudo der certo, em breve me verão num grupo de pagode ou funk. Me rebolando todo.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

ONOFRE, o novato no campo

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Um Livro Cansativo

(Óscar Fuchs)

Finalmente acabei a leitura de um dos livros mais cansativos que tive nas mãos. Há alguns anos o historiador J. M. Roberts se pôs obstinadamente a escrever a história do mundo. Toda a história do mundo! E conseguiu. Mas quando, depois do hercúleo trabalho, levou os originais a seu editor soube que aquele calhamaço não poderia ser editado em um único volume, mas no mínimo em oito, o que seria impossível por razões comerciais. Assim, o editor pediu que a obra, toda aquela pesquisa e dedicação, fosse reduzida a apenas um volume. Não conheço Roberts pessoalmente, mas parece ser uma pessoa bem humorada pelo título que escolheu para o livro compactado: The shorter history of the world ou, em bom português, A mais curta história do mundo. Certamente uma ironia para alfinetar o editor, que ferira seu orgulho “por razões comerciais”.

No Brasil The shorter history of the world foi publicado com o título de O Livro de Ouro da História do Mundo – da pré-História à Idade Contemporânea (Editora Ediouro). É magnificamente escrito e de deliciosa leitura. Ainda assim é cansativo, não para ler, mas para segurar. Apesar de todo o esforço de Roberts, o livro tem quase mil páginas em tamanho grande, o que o torna um bloco de granito. Lê-lo deitado acarreta um afundamento do plexo. Sustentando nas mãos, uma tendinite ou bursite. Enfim, segurá-lo é um trabalho braçal cansativo que esgota fisicamente. A solução é colocá-lo sobre uma cadeira, estante ou mesa e deliciá-lo sentado, como se faz numa refeição.

Em A mais curta história do mundo — desculpem, mas prefiro o título original traduzido por ser irônico —, Roberts narra desde que a História ainda não era História, até os dias de hoje. “A História é a narrativa dos seres humanos, e o que nos interessa é o passado humano”, diz ele. Portanto, teoricamente, a História deveria começar pelo primeiro ser humano, mas quando surgiu o primeiro humano? Daí vem o termo pré-História, significando “anterior à história”, pois o ser humano ainda não existia. E Roberts optou por contar tudo, desde o início, já que é difícil saber quando ou onde surgimos, apesar das pesquisas e suposições.

Porém, o que mais impressiona, além da qualidade e do peso do livro, é a demonstração de como nós, seres humanos, somos efêmeros, passageiros e instantâneos. “Os primeiros símios e macacos — então os primatas mais desenvolvidos — apareceram há cerca de 25 milhões de anos”, diz o autor. E quando chegamos ao final do livro temos a sensação, ou melhor, a percepção de que aquilo que aconteceu há 100 ou 200 anos, foi agora!

Essa sensação fica clara quando abrimos um dos últimos capítulos, intitulado Época Atual: A Longa Trajetória. Passamos pelos impérios egípcio e fenício, passamos pelo babilônico, persa, macedônico, romano, cartaginês, turco otomano, mongol, chinês, o Sacro Império Romano — que durou cerca de mil anos! —, até chegarmos ao germânico e ao atual americano, só para citar alguns. Todos os impérios levaram centenas de anos para serem consolidados e duraram outras centenas de anos, com exceção do império americano. Nessa comparação nos damos conta de que esse império americano surgiu no curso de apenas algumas décadas e que só existe há cerca de 60 anos. Ou seja, ao contrário do que acontecia na história anterior, na história da nossa geração um império se forma, se consolida e talvez venha a sucumbir no espaço de apenas uma vida!

Hoje a história está mais rápida, tudo é vertiginoso e de uma hora para outra tudo muda. Em nosso dia-a-dia as coisas surgem como novidades e desaparecem logo depois, e isso se reflete na política, na economia e em todas as outras relações, seja entre pessoas, corporações ou entre blocos de nações e potências. Ao terminar a leitura de nossa história, chegamos à conclusão de que provavelmente, se continuarmos nesse ritmo, também não vamos durar muito. A única reparação em A mais curta história do mundo talvez seja o título do capítulo 13. Em vez de Época atual, o historiador J. M. Roberts poderia tê-lo intitulado “A que ponto chegamos!”

quinta-feira, 29 de abril de 2010

The Guitarman

Basead on Fornazza
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Palavras... Apenas Palavras

(Óscar Fuchs)

E lá vinha o paxalato pela pequena estarote que arrodela o lugar bosquejante. Na frente, cavaleiros palagonitos ornamentados por ripienas que chavascavam o obélio das árvores. Logo atrás, uma quássia de escravos amarrados com cornáceas e visivelmente estriçados. Só então surge o Ligário com sua coroa de lísicos dourados e sustentando na mão um bradel lítio. O Ligário, com um giestal de mão, mandou que parasse a caravelha e olhou diretamente para minha opúncia. Em seguida, picicou:

— Gineta, quem és?

— Sou Rosélia, filha de Genovese, o cúrio de vosso reino, Vossa Mancebia.

— Terei que dar meus pandarecos ao cúrio, és muito barita!

— Vossa Agrestia tem olhos genebreses.

— Irás ao dandinar desta noite?

— Se Vossa Gerodermia assim o quiser, irei com grande pendor.

— Estarei esperanto.

Caiu a noite e chegou a hora do dandinar. Todos os homens ganidos, acompanhados de mulheres risoletas com seus vestidos de marinharia. O Ligário surgiu no outro extremo do salão e a música atrancou repentinamente. Os convictos o saudaram com uma saúva de palmadas. Ele testiculou com a cabeça e a música reiniciou. O Ligário cambaleou em minha direção, parou à minha fronte, deu um bonito sibilo e me convidou à pança.

— Dar-me-ias o lazer desta pança?

— Fico lipoaspirada. — Respondi.

Coloquei meu traço no seu e fomos para o centro do salão. Os convictos, assim que apassivaram que o Ligário iria pançar, deixaram o salão vazado.

—Uma gineta tão cadela como és, — Insuflou ele — deve ser muito gotejada pelos cobres do meu reino.

— Porco saio, só quando vou às trompas. Adoro fazer trompas!

— Pelo modess* como te vestes, padeces ter muito bom gosto!

— Obliquada.

— Teu pai, o cúrio, também padece estar em muito boa condição fiadeira. Esses trapos custam caro!

— É verdade. Ele tem algumas corjas.

— Em Terro?

— Não, em Farto.

Para minha suspeita, ele me repeliu em casamento.

— Com teu dinheiro salvamos o reino e tu recebes o título de generatriz. O que achas?

— Seu cópula! — Disse eu, mas aceitei.

Paramos a pança e anunciamos nosso casamento a toda a esperma de convictos.

— Um bilíngüe aos noivos! — Gritou alguém.

Todos ergueram bilíngües a nossa saúde. Depois nos deram uma saúva de palmadas e, em fila andina, nos entregaram os comprimentos. Saímos do salão atarraxados e abanando para nossos súbitos.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

The Guitarman

Based on Fornazza

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Compulsório

(Óscar Fuchs)

Em um amigo secreto desses que se fazem no trabalho pedi um CD de música clássica. Dei inclusive dicas: Mozart, Telleman, Bach. Quando desenrolei meu CD era do Kenny G. Além de não ser clássico, odeio Kenny G! Emprestei o CD para todo mundo que podia, até que me livrei do maldito. Talvez alguém tenha gostado e não quis devolver, abençoada criatura. Mas o pior disso tudo é que tive que ouví-lo, porque certamente a pessoa que me "presenteara" iria querer comentá-lo.

Essa é a parte ruim: fazem questão de nos dar ou nos emprestar algo pensando que vamos gostar. Já tive que assistir inúmeros filmes, ouvir diversos discos, ler ...Meu Deus!... imagine ser obrigado a ler incontáveis livros ruins, odiáveis, desinteressantes, só porque as pessoas iriam querer comentá-los!

Você deve estar pensando: ora, basta não ler, não ouvir, não assistir. Tudo bem, mas e a educação? E a inimizade que isso pode gerar? Conheço pessoas que não se falam há anos por causa de um livro não lido, mas devolvido.

— Vovô, mas qual era o livro?

— Não lembro. Só sei que ele me devolveu sem ler dizendo que tinha lido. Aquele safado!

— E por que você queria tanto que ele lesse?

— Porque eu achava que o livro era bom, aquela porcaria.

— Hoje você não gosta mais do livro?

— Nem lembro qual era, li porque estava na moda naqueles tempos.

— E só por isso você e seu amigo não se falam há trinta anos?

— É. Aquele imbecil.

— Mas, vovô, como é que vocês passam horas a fio jogando batalha naval, todas as tardes, sem se falar?

— Por mímica.

Hoje exijo que só me emprestem um livro, um CD, um filme se eu pedir. Ou, quando tomam a iniciativa com aquela conversa de "Eu sei que você não gosta disso, mas esse é especial e ...", respondo na chincha:

— Se sabe, por que insiste?

Não tenho mais tempo e nem paciência para desperdiçar compulsoriamente. Entretanto, reconheço que já me caíram nas mãos coisas maravilhosas. Agora mesmo, por exemplo, estou lendo um livro que me foi emprestado. É sobre geologia. Assim que terminar, vou lhe emprestar. Tenho certeza que você vai adorar.

E o neto pergunta:

— Mas, vovô, por que vocês não acabam com essa bobagem e começam a conversar de novo?

— Porque ele me emprestou um livro que sabe que não vou gostar. Vou ter que ler e depois comentar.

— Não vai precisar comentar, vovô. Vocês não se falam!

— Por mímica... aquele canalha.

quarta-feira, 31 de março de 2010

DIMENOR - menino de rua



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Reserva de Mesa

(Óscar Fuchs)


Os que almoçam em restaurantes buffet sabem do que falo. A pessoa chega ao restaurante lotado e tenta marcar, tenta reservar uma mesa enquanto se serve no buffet. Algumas mulheres deixam sobre a mesa a bolsa, o que é uma temeridade, pois além de perder a reserva, podem perder também a bolsa. Outros deixam o telefone celular e em seguida aparece o carregador... e carrega o celular para bem longe. Outros deixam a carteira e outros ainda deixam um bilhete enfático: “Tira o olho que essa mesa é minha, pô!”.
Há aqueles que ficam de pescoço espichado e olho arregalado, com o prato na mão, se servindo de não-sabe-o-que, pois nem está prestando atenção no buffet, apenas naquela mesa livre. Há, também, o tipo “torcedor”: ele está à sua frente, dando a volta no buffet, mas com os olhos no salão de mesas como se fosse um campo de futebol, murmurando entre-dentes:
— Beleza, desocupou uma lá... Não senta! Não senta! Sentou. Outra mesa... sai rápido, sai rápido... só vou pegar a batatinha frita e já to aí... Não senta aí! Saí fora! Putz, perdi.
Nenhuma dessas modalidades, no entanto, funciona. Só há um jeito de reservar mesa sem correr nenhum risco. E eu descobri. Deixo um livro sobre a mesa. Sempre levo um livro para ler na minha hora de almoço e já fiz a experiência em mesas para até seis pessoas, com apenas um livro. Não ocuparam nenhuma das seis cadeiras! Em alguns restaurantes, inclusive, não ocuparam sequer as mesas em volta daquela que estava, digamos, reservada pelo livro.
Por quê? Por que não colocam o livro sobre uma cadeira? Ou ainda, por que não roubam o livro? Por quê? Ora, porque o livro provoca medo, repulsa, até nojo. O livro afasta a massa ignara, os idiotas, os pseudo-espertos. O livro assusta os imbecis, os analfabetos funcionais, para quem ler algo mais que revista de fofocas ou notícias do futebol é uma tortura e um desperdício de tempo. E são maioria.
É impressionante como no Brasil o vulgar tornou-se cultura. Por isso sempre saio para o almoço com meu livro debaixo do braço: além da boa leitura, uma reserva de mesa. Afinal, num país com tamanha mediocridade, quem roubaria logo um livro!? Não teria a menor utilidade.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Dimenor e Geraldão


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Filosofando

(Óscar Fuchs)

Jesus Cristo voltou à terra para dizer “Viu? Eu avisei! Chegou a hora do fim-do-mundo.” Numa praça de uma grande cidade, sobre um banco, filosofava para quem passava:
— O que se tornou o homem, senão seu próprio inimigo? Em verdade, em verdade, vos digo: já foram salvos uma vez, mas eis que o homem não tem ouvidos para ouvir, nem tem olhos para ver. A meu pedido o pai vos deu o perdão, mas...
As pessoas começaram a se aglomerar em frente ao banco de praça para ouvi-lo. Durante sua pregação alguém lhe puxou as vestes.  Ele olhou para baixo e um senhor com cara de poucos amigos o interpelou:
— Cadê a carteirinha?
— Carteirinha? — Perguntou Cristo.
— É, a carteirinha da OFB! Vai me dizer que não tem?
— OFB?
— Ordem dos Filósofos do Brasil, meu rapaz. Pensa que pode sair filosofando por aí, assim, sem mais nem menos?
— Ao homem cabe saber que em seu trono de ouro o pai...
— Quieto! Quieto! Mais uma filosofada e te denuncio.
— Nada temas, mas crê no que digo... — Tentou Cristo.
— Não vai dizer mais nada! Quem pensa que é?
— Eu sou aquele que distribuiu o pão entre...
— Padeiro!? E o que um padeiro entende de filosofia?
— O senhor de todo o universo me enviou para...
— Não interessa quem te mandou. A gente passa anos na faculdade, estudando, e aí aparece um leigo pensando que pode formular teorias e pensamentos impunemente. Não mesmo!
— As palavras de meu pai são minhas palavras.
— Não enrola. Cadê a carteirinha!
— A César o que é de César... — Disse Cristo.
— Não enrola, César!!!! Cadê a carteirinha?
— Venho em paz.
— Ahá!!! Agora sentiu o tranco, né? Não adianta se esquivar, vou chamar a polícia. — O fiscal gritou para um policial que estava passando. — Ô, policial! Quero fazer uma queixa contra esse tal de César aqui.
O fiscal da OFB formalizou a denúncia e Cristo foi levado.
— E agora, o que me diz? — Perguntou o fiscal com sarcasmo enquanto Cristo era conduzido algemado.
— Pilatos lavou as mãos. — Respondeu Cristo — Já preguei contra a intolerância e fui...
— Tá vendo? Tá vendo? Ele tá confessando que já fez isso antes. Reincidente! Reincidente!— Apontou o fiscal da OFB para o policial.
— Não entenderias, não conheces todos os mistérios do Pai.
— Ah, é? E quem é seu pai, esse desmiolado que deixa você sair por aí falando o que vier a cabeça?
— Sou filho de Deus... assim como todos nós..
— Sem tangências! Sem tangências! Sabe o que é tangência? Não interessa... quero saber quem é o irresponsável que deixa um filho assim, visivelmente perturbado, usando uns trapos enrolados no corpo, com barba e cabelo enormes sair por aí pensando que é um Confúcio, um Tomás de Aquino, um Santo Agostinho, um Nietsche!
Patre Putativo? Nasci de Maria e José. Ele era carpinteiro e...
— Carpinteiro? Pois meu pai é funcionário da Assembléia Legislativa e ainda assim foi difícil pagar a faculdade de filosofia! Vai me convencer que um carpinteiro poderia pagar uma faculdade?
— Minha mãe, Maria, a Virgem...
— Ah! Essa não! Virgem? Nos dias de hoje? Conta outra, charlatão!
Apesar de todos os argumentos e evidências, ante a ignorância e desinformação geral, Cristo foi levado. Espera um advogado da defensoria pública para obter um habeas corpus ou um julgamento justo. Enfim, graças ao bom senso e à fidelidade corporativa de nosso atuante colega, o fim-do-mundo foi adiado.