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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

DIMENOR - menino de rua



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Senso Comum

(Óscar Fuchs)

O filho prestou a prova pela manhã. Ao chegar em casa o pai, jornalista, sentiu-se gratificado e orgulhoso ao saber que a prova de interpretação de texto fora baseada em um texto seu. Convocou o filho para uma conferência das respostas.

— Não precisa, pai. Vão divulgar o gabarito hoje à tarde.
— E quem precisa de gabarito se tem o próprio autor do texto para conferir? — Alegou, presunçosamente.

O garoto fez um muxoxo de impaciência.
— Vamos lá. Traga a prova que eu confiro. Você lê as respostas e eu digo qual é a correta.

O menino trouxe o caderno de provas, atirou-se entediado no sofá e começou.
— No texto, o autor quer dizer...
— O autor sou eu. — Interrompeu o pai, com um sorriso arrogante.

O filho suspirou fundo, enfastiado, e recomeçou:
— No texto, o autor quer dizer que: resposta a) É melhor viver no interior; b) O homem do interior não tem cultura; c) Qualquer um pode ter sabedoria, mesmo não tendo estudo; d) A sabedoria é típica das pessoas do interior; e) Há preconceito quanto aos conhecimentos do homem do interior.

O garoto ficou olhando para o pai-escritor com o lápis na mão.
— Resposta “C”, na cabeça. Pode marcar aí.
— Acho que a resposta correta é a “E”, pai.
— Nada disso. Não vou saber o que eu mesmo quis dizer num texto escrito por mim mesmo? Resposta “C”.
O filho balançou a cabeça e marcou a "C", condescendente.
— Ta bem. Pergunta 2. Quando o autor...
— Eu! Há! Há! Há! — Interrompeu o pai com uma gargalhada.
— Quando o autor cita um "lúpem", ele está se referindo: resposta a) A um bandido; b) A um mendigo; c) A um louco; d) A uma pessoa à-toa; e) A um sábio.
— Essa é moleza, só espero que você tenha marcado a "B".
— Não, marquei "D".
— Mas, o que é isso? Logo você, o filho de um intelectual... e do próprio autor do texto, diga-se de passagem.
— Como é que vou saber o que você quis dizer com isso e aquilo? Por isso é que odeio interpretação de texto, a gente tem que interpretar o que eles acham que interpretaram.
— Nada disso, meu filho. Isso é importantíssimo para poder destrinchar textos e idéias. Os professores estão certos.
— Mas, pai, como é que eles vão saber o que você quis dizer? Por que eles é que estão certos?
— Ora, eles são professores. Para isso são professores!
— Mas "interpretação" não significa que cada pessoa pode ver de um jeito, com a sua interpretação?
— Senso comum, meu filho. Senso comum. Há sempre um senso comum. — Disse em tom professoral.
— Ta bem, pai.
— Vamos lá, próxima pergunta!

O filho pegou o caderno de provas irritado:
— Pergunta 3. O texto diz que...
— O texto é meu. — Reafirma o pai, com o indicador levantado.
— Eu sei, pai, eu sei!
— Só para constar. Continue.
— O texto diz que...

E assim continuaram pai e filho até o final da tarde, quando foi divulgado o gabarito.
— Gabarito? Ótimo, ótimo! Vamos ver! — Disse o pai mais entusiasmado e ansioso que o filho.
Conferiram as respostas do filho. Ele havia errado seis questões.
— Agora vou te arrasar, confira as minhas respostas aí. — Disse o pai com toda a autoridade de quem havia escrito o texto.

À medida que o filho ia conferindo, abria mais o sorriso. Por fim, às gargalhadas, anunciou:
— Você errou todas, pai!
Estupefato e incrédulo, tomou a prova das mãos do filho que rolava de rir no sofá.
— Impossível! Impossível!

Conferiu tudo novamente e constatou que realmente não acertara nenhuma. Raivoso, fora de si, vingativo, batia com a prova enrolada nas poltronas:
— Como é que eles podem pensar que sabem mais que eu daquilo que eu mesmo escrevi? Esses incompetentes. Me dá o telefone desse vestibular que vou ligar para eles. Ora, onde já se viu? Pensarem que sabem mais do que eu do meu texto! Afinal, quem foi que decretou que eles têm a interpretação correta? Então não saberia eu o que estava dizendo quando escrevi? E o que é "interpretação", afinal? Cada pessoa pode ter a sua. Ninguém pode determinar que todas as pessoas interpretem do mesmo jeito! Aliás, eles mesmos interpretaram tudo errado. Quem são eles para acharem que sabem mais que eu?
— Senso comum, pai. Senso comum. Sempre há um senso comum.