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quinta-feira, 27 de abril de 2017

Inverno

Dimenor, menino de rua                                                                      Óscar Fuchs

Meu lado esquerdo

(Óscar Fuchs)

— Bom dia, no que posso ajudá-lo?
— Bem, doutor, é que eu quero ser mais descontraído, andar mais à vontade, mais relaxado.
— Isso é fácil. O senhor me conta algumas coisas da sua vida e...
— Não, doutor, não sou eu o problema. O senhor vai ter que tratar a minha mulher.
— Ah, é mesmo? E qual é o problema dela?
— Bem, o senhor tinha um colega famoso, o psiquiatra Oliver Sacks.
— Sim. Ele escreveu “O Homem que confundiu sua mulher com um chapéu”.
— Esse mesmo. Antes de vir eu tomei banho, fiz a barba, cortei o cabelo...
— E o que sua mulher tem a ver com isso?
— Olhando pra mim, o que o senhor vê de... anormal?
— De anormal? Deixa ver... pode se levantar, por favor? Nada. Pode sentar.
— Não seja gentil, doutor. Diga exatamente o que não está certo comigo.
— Mmmmm... já disse, não vejo nada...
— O senhor está vendo, mas não quer dizer.
— O que estou vendo?
— Meu dente.
— É verdade, reparei que está faltando um dente, mas não considerei isso anormal.
— Mas minha mulher considera. Quando o senhor percebeu que me faltava o canino esquerdo?
— Assim que o senhor entrou no consultório.
— Tá vendo? O senhor vê meu lado esquerdo.
— Claro que sim. E daí?
— Doutor, sou casado há trinta anos. Minha mulher vive chamando minha atenção para minha saúde e minha aparência. Há trinta anos, ouço ela dizer: seu cabelo tá comprido, vá ao barbeiro; Faça a barba, parece um mendigo; Corte os pelinhos da orelha, tá como um ninho de urubu; Camiseta horrível, vista uma daquelas polo que lhe dei. Quando nos conhecemos ela disse: Você tem um olho lindo. Naquela época não dei atenção, é só jeito de falar, pensei. Mas, com o tempo, fui reparando que tinha algo de errado. Quebrei esse dente há três meses e ela ainda não disse nada.
— Ainda não entendi.
— Olha, doutor, já sorri para ela de todas as maneiras, já dei gargalhada, já me fantasiei de Drácula e fiz de conta que ia morder seu pescoço, mas ela não percebeu meu dente quebrado. Já imitei até japonês sorrindo... e nada.
— E por que o senhor acha que isso é um problema?
— Ora, doutor, trinta anos dando bronca por causa das aparências e, de repente...?
— O que acha que está acontecendo?
— Ela não vê meu lado esquerdo, doutor.
— Desculpe, mas...
— Foi por isso que, ao nos conhecermos, ela disse “você tem um olho lindo”, ela realmente só vê um olho meu, o olho direito!
— É bem curioso, só que...
— Nesses últimos três meses, para me certificar, deixei a barba crescer só do lado esquerdo, ela não disse nada. Deixei o cabelo comprido só do lado esquerdo, ela não disse nada. Usei uma camiseta toda furada do lado esquerdo, ela não disse nada. Agora esse dente quebrado e ela não diz nada.
— O senhor andava assim por aí, pela rua?
— Sim. Metade coxinha e metade petralha. E sabe de uma coisa? Descobri que adoro ser petralha! É muito mais descontraído, mais à vontade, mais relaxado, entende?
— Entendo. Mas o que posso fazer?
— Quero que o senhor trate minha mulher e faça com que ela não veja também meu lado direito, quero ser petralha por inteiro.
— Mas se ela não enxergar seu lado esquerdo e nem seu lado direito, ela vai deixar de ver o senhor.
— É mesmo. Não tinha pensado nisso. Serei invisível para ela.
— Pois é. E se o senhor a ama...
— Amo, amo sim, doutor.
— Então...
— Então, vou ter que ser meio coxinha por toda a vida... ou ela será Diana.
— Diana, que Diana?
— O senhor não lia quadrinhos? Tinha o Fantasma, que desapareceu e a mulher pensava que ele estava morto... a mulher era Diana, a mulher do Fantasma.
— Ah, sim. Mais alguma coisa?

— Só mais uma coisa, doutor: se eu trouxer um batalhão de coxinhas... o senhor faz aquelas hipnoses coletivas?