CHEGOU!!! CRÔNICAS & RABISCOS, em março, grande lançamento! Crônicas de humor, edição ilustrada

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

O dia que Roberto Carlos atropelou o papeleiro

Óscar Fuchs


A história aconteceu na minha rua e é verídica.

Todo início de noite Gilnei, o papeleiro, passava recolhendo o lixo reciclável da minha rua. Vinha com seu carrinho de coleta pela Avenida Aureliano até chegar ao Bar do Vandi, sua “parada estretégica” ­- como ele definia -­ para um trago. Na verdade, ele vinha de várias paradas estratégicas ao longo do percurso. Como sempre, bebeu seu martelinho e na saída despediu-se com um aceno. Voltou à calçada e se acoplou outra vez a seu carrinho carregado de papelão.

Deu dois passos à esquerda e olhou para trás, para ver se vinham carros, quando foi lançado de volta à calçada, contra a parede do prédio. Um automóvel preto, luxuoso, grande e possante o atingira. Um pouco tonto pelo susto -­ ou pelos martelinhos -­, apesar do forte choque deu um riso e exclamou um “ôigale!”, enquanto tentava levantar.

Ao ouvir o estrondo da batida, o Bar do Vandi inteiro saiu à rua e viu o Gilnei ali, se erguendo apoiando-se na parede. Acontece que não era apenas um carro luxuoso e preto, mas uma fila deles! Ao darem com o papeleiro levantando-se e aquela escolta de automóveis pretos parados em fila dupla, concluiram de pronto que um grã-fino atropelou o papeleiro. E vieram como um cardume em defesa do Gilnei.

O papeleiro não se vitimizou. Ao ser amparado pelos amigos do boteco -­ bêbado é sempre solidário -­ , levantou os braços tranquilizando:

-­ Não foi nada, não precisa se preocupar...

Da caravana de carros pretos sairam enormes seguranças, homens em ternos pretos, camisas brancas e gravatas também pretas. Cercaram o papeleiro que repetia “não foi nada!”, enquanto os bebuns solidários do boteco cobravam providências dos gigantes. Bastaria os grandalhões darem um tabefe e derrubavam todos num só golpe. Mas o pessoal do boteco não se rendia e exigia reparações.

-­ Tem que socorrer! -­ Proclamou Seabra com o dedo em riste no nariz do segurança.
-­ E olha o carrinho, tá todo torto. Tem que dar um carrinho novo! -­ Exclamou Moacyr.
-­ E vai pagar uma rodada pra todo mundo, não vai? -­ Perguntou Gabriel, num grau mais conciliador e alcoólico.

Foi nesse momento que abri o portão do meu prédio, vizinho ao Bar do Vandi, para depositar na rua meu lixo reciclável. O rebuliço perto da porta do bar chamou minha atenção. E foi aí que vi passar, vindo do outro lado, a dois passos de mim, de branco e claudicante, Roberto Carlos. Já tinha depositado as sacolinhas de lixo e tentava entender o que estava acontecendo. Roberto Carlos se aproximou do papeleiro e perguntou entre os seguranças:

-­ Tudo bem aí, gaúcho?

A turba ficou boquiaberta se entreolhando como que perguntando “Tão vendo o mesmo que eu?”. Alguns sacudiram o copo e perguntaram intrigados:

-­ O que o Vandi colocou aqui dentro dessa vez?

Ao ver de quem vinha a pergunta, Gilnei soltou um longo “aaaaaaiiiiiiiii”. Aquele que instantes antes garantia que “não foi nada!” e que dizia “não precisa se preocupar”, de repente estava indeciso entre se queixar ou levantar e abraçar o “rei”. Considerando a precária situação naquele momento de sua vida, optou pela primeira opção.

Os fregueses do Bar -­ todos agora na calçada -­, talvez pela elevada gradação alcoólica, retomaram a ofensiva exigindo para o papeleiro um atendimento compatível com a grandeza do astro. O papeleiro, colado à parede se contorcendo de dor, queixava-se:

-­ Aaaaiiiii meu cotovelo!
-­ Ué, mas até agora você dizia que não sentia nada! -­ Inquiriu um dos seguranças.
-­ Foi de repente... aaaaaiiiiiii.

Os botequeiros em algazarra exigindo socorro imediato à vitima, os seguranças tentando afastá-los e o Gilnei se queixando:

-­ Aaaaaiiiiii.... minha costela!

O segurança garantia:

-­ Pode deixar que a gente vai cuidar de você,
-­ Obrigado...aaaaaiiiii.....meu fêmur.....
-­ Mas aí é o quadril!
-­ Viu como deslocou? Aaaaiiiiiii... meu baço... -­ E apalpava a garganta.

Percebendo que não fora nada grave, Roberto Carlos passou por mim outra vez e voltou para um dos carros pretos.O segurança abriu a porta e ele entrou no segundo veículo da comitiva. A caravana arrancou, menos um dos carros que ficou para socorrer o papeleiro. Enquanto ele fingia várias fraturas expostas, levaram-no amparado até o automóvel, abriram a porta, colocaram-no no banco traseiro e arrancaram.

Há algum tempo reencontrei o Roberto Carlos ­- o Gilnei, que assumiu o apelido ­- bebendo outra vez seu martelinho no bar do Vandi. Contou que naquela noite o levaram ao Pronto Socorro:

-­ Andei naquele carrão! -­ Exclamou numa gargalhada.

Pagaram todos os exames e todos os tratamentos que ele precisava:

-­ Até pra doença que eu não tinha!

-­ Qual doença? -­ Perguntei.

-­ Alcoolismo. Vê se pode, eu alcoólatra!

Depois o levaram pra casa, arranjaram-lhe um emprego e ainda contribuiram com uma cesta básica. Mas o maior problema foi com sua mulher.

-­ É mesmo? Por quê? -­ Perguntei.

-­ Até hoje ela me joga na cara que eu não pensei nela, que eu devia ter exigido mais coisas.

-­ Que coisas?

-­ Um ingresso pro show e um autógrafo.

Gilnei voltou a carrinhar, não gostou do serviço num frigorífico. Essa foi a última vez que o ví. Deve estar por outras ruas contando sua história toda vez que alguém lhe pergunta:

-­ Por que seu apelido é Roberto Carlos?

-­ Porque uma vez...
          
N.A.:
1. Seabra, um dos frequentadores do Bar do Vandi, continua frequentando o boteco e sempre que alguém pede que ele confirme a história, cobra uma dose de cachaça com Underberg pelo testemunho.
2. A “plaquinha” que ele colocou na árvore dizendo “Aqui Roberto Carlos Atropelou um papeleiro”, já apodreceu e caiu....mas a árvore continua ali, na frente da porta do meu prédio.
3. Roberto Carlos, nessa noite, fez um show no Gigantinho. Minha rua, onde aconteceu o acidente, é caminho para o local.