Óscar Fuchs
A
história aconteceu na minha rua e é verídica.
Todo
início de noite Gilnei, o papeleiro, passava recolhendo o lixo
reciclável da minha rua. Vinha com seu carrinho de coleta pela
Avenida Aureliano até chegar ao Bar do Vandi, sua “parada
estretégica” - como ele definia - para um trago. Na
verdade, ele vinha de várias paradas estratégicas ao longo do
percurso. Como sempre, bebeu seu martelinho e
na saída despediu-se com um aceno. Voltou à calçada e se acoplou
outra vez a seu carrinho carregado de papelão.
Deu
dois passos à esquerda e olhou para trás, para ver se vinham
carros, quando foi lançado de volta à calçada, contra a parede do
prédio. Um automóvel preto, luxuoso, grande e possante o atingira.
Um pouco tonto pelo susto - ou pelos martelinhos
-, apesar
do forte choque deu um riso e exclamou um “ôigale!”, enquanto
tentava levantar.
Ao
ouvir o estrondo da batida, o Bar do Vandi inteiro saiu à rua e viu
o Gilnei ali, se erguendo apoiando-se na parede. Acontece que não
era apenas um carro luxuoso e preto, mas uma fila deles! Ao darem com
o papeleiro levantando-se e aquela escolta de automóveis pretos
parados em fila dupla, concluiram de pronto que um grã-fino
atropelou o papeleiro. E vieram como um cardume em defesa do Gilnei.
O
papeleiro não se vitimizou. Ao ser amparado pelos amigos do boteco
- bêbado é sempre solidário - , levantou os braços
tranquilizando:
-
Não foi nada, não precisa se preocupar...
Da
caravana de carros pretos sairam enormes seguranças, homens em
ternos pretos, camisas brancas e gravatas também pretas. Cercaram o
papeleiro que repetia “não foi nada!”, enquanto os bebuns
solidários do boteco cobravam providências dos gigantes. Bastaria
os grandalhões darem um tabefe e derrubavam todos num só golpe. Mas
o pessoal do boteco não se rendia e exigia reparações.
-
Tem que socorrer! - Proclamou Seabra com o dedo em riste no
nariz do segurança.
-
E olha o carrinho, tá todo torto. Tem que dar um carrinho novo! -
Exclamou Moacyr.
-
E vai pagar uma rodada pra todo mundo, não vai? - Perguntou
Gabriel, num grau mais conciliador e alcoólico.
Foi
nesse momento que abri o portão do meu prédio, vizinho ao Bar do
Vandi, para depositar na rua meu lixo reciclável. O rebuliço perto
da porta do bar chamou minha atenção. E foi aí que vi passar,
vindo do outro lado, a dois passos de mim, de branco e claudicante,
Roberto Carlos. Já tinha depositado as sacolinhas de lixo e tentava
entender o que estava acontecendo. Roberto Carlos se aproximou do
papeleiro e perguntou entre os seguranças:
-
Tudo bem aí, gaúcho?
A
turba ficou boquiaberta se entreolhando como que perguntando “Tão
vendo o mesmo que eu?”. Alguns sacudiram o copo e perguntaram
intrigados:
-
O que o Vandi colocou aqui dentro dessa vez?
Ao
ver de quem vinha a pergunta, Gilnei soltou um longo
“aaaaaaiiiiiiiii”. Aquele que instantes antes garantia que “não
foi nada!” e que dizia “não precisa se preocupar”, de repente
estava indeciso entre se queixar ou levantar e abraçar o “rei”.
Considerando a precária situação naquele momento de sua vida,
optou pela primeira opção.
Os
fregueses do Bar - todos agora na calçada -, talvez pela
elevada gradação alcoólica, retomaram a ofensiva exigindo para o
papeleiro um atendimento compatível com a grandeza do astro. O
papeleiro, colado à parede se contorcendo de dor, queixava-se:
-
Aaaaiiiii meu cotovelo!
-
Ué, mas até agora você dizia que não sentia nada! - Inquiriu
um dos seguranças.
-
Foi de repente... aaaaaiiiiiii.
Os
botequeiros em algazarra exigindo socorro imediato à vitima, os
seguranças tentando afastá-los e o Gilnei se queixando:
-
Aaaaaiiiiii.... minha costela!
O
segurança garantia:
-
Pode deixar que a gente vai cuidar de você,
-
Obrigado...aaaaaiiiii.....meu fêmur.....
-
Mas aí é o quadril!
-
Viu como deslocou? Aaaaiiiiiii... meu baço... - E apalpava a
garganta.
Percebendo
que não fora nada grave, Roberto Carlos passou por mim outra vez e
voltou para um dos carros pretos.O segurança abriu a porta e ele
entrou no segundo veículo da comitiva. A caravana arrancou, menos um
dos carros que ficou para socorrer o papeleiro. Enquanto ele fingia
várias fraturas expostas, levaram-no amparado até o automóvel,
abriram a porta, colocaram-no no banco traseiro e arrancaram.
Há
algum tempo reencontrei o Roberto Carlos - o Gilnei, que assumiu
o apelido - bebendo outra vez seu martelinho no
bar do Vandi. Contou que naquela noite o levaram ao Pronto Socorro:
-
Andei naquele carrão! - Exclamou numa gargalhada.
Pagaram
todos os exames e todos os tratamentos que ele precisava:
-
Até pra doença que eu não tinha!
-
Qual doença? - Perguntei.
-
Alcoolismo. Vê se pode, eu alcoólatra!
Depois
o levaram pra casa, arranjaram-lhe um emprego e ainda contribuiram
com uma cesta básica. Mas o maior problema foi com sua mulher.
-
É mesmo? Por quê? - Perguntei.
-
Até hoje ela me joga na cara que eu não pensei nela, que eu devia
ter exigido mais coisas.
-
Que coisas?
-
Um ingresso pro show e um autógrafo.
Gilnei
voltou a carrinhar,
não gostou do serviço num frigorífico. Essa foi a última vez que
o ví. Deve estar por outras ruas contando sua história toda vez que
alguém lhe pergunta:
-
Por que seu apelido é Roberto Carlos?
-
Porque uma vez...
N.A.:
1. Seabra, um
dos frequentadores do Bar do Vandi, continua frequentando o boteco e sempre que
alguém pede que ele confirme a história, cobra uma dose de cachaça com
Underberg pelo testemunho.
3.
Roberto Carlos, nessa noite, fez um show no Gigantinho. Minha rua, onde
aconteceu o acidente, é caminho para o local.
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