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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O Anjo

(Óscar Fuchs)

Reencontrei meu ex-vizinho, Jorge, a quem passei a chamar de minha memória externa E.X.T., porque ele vive me relembrando coisas de nossa época infante e adolescente. Jorge puxa um fiozinho e lá vêm outras centenas de memórias se arrastando até meu cérebro que eu pensava já estar inválido, numa cabeça de rodas.

Há poucos anos meu sobrinho perguntou-me o que é nostalgia. Respondi que ele só saberia o que é nostalgia quando tivesse vivido o bastante para saber o que é nostalgia. Ao encontrar o Jorge me deu nostalgia. Sinal de que já vivi bastante, talvez demais. Meus quinze ou dezesseis anos foram naquela época em que havia apenas a palavra adolescência para designar quem tinha entre quinze e dezoito. Antes dessa idade ainda era criança. Agora temos pré-adolescentes, adolescentes, início da idade adulta.

Também na minha adolescência — o que seria hoje a pré-adolescência — a gente brincava mais que assaltava, consumia escondido bala e pirulito ao invés de crack, tomava emprestado carrinho de lomba ao invés de roubar automóveis... mas tudo isso foi lá no século XX.

O bairro Petrópolis ainda era chamado de fim-da-linha. O sonho de qualquer um de nós, Jorge, eu e outros adolescentes era poder entrar no Cine Ritz para assistir a um filme proibido para menores de dezoito anos. Certa vez o padre da Igreja São Sebastião, defronte ao Cine Ritz, queixou-se aos vizinhos:

— É uma vergonha! Aqueles cartazes de cinema com mulheres seminuas! Imagina devotos saindo da igreja depois do culto verem aquilo, esquecem todo o sermão! — Reclamou.

Então meu irmão mais velho rebateu:

— Pois é, padre. Mas imagina o sentimento de culpa de quem está saindo do cinema e dá de cara com a sua enorme igreja.

O padre sorriu e saiu vibrando com a assertiva.

Só que isso aqui não é uma resenha nostálgica e sim uma homenagem tardia. Apenas contei tudo isso para situar a época e o local.

No que chamávamos de fim-da-linha — Petrópolis —, todos conheciam a Livraria e Papelaria Louvre, ao lado da igreja, onde eu era balconista. No Louvre eu lia todos os lançamentos. Os livros vinham envoltos em plástico para que não fossem manuseados e folheados. Hoje eu posso confessar, pois o crime já expirou: eu tirava com todo cuidado o plástico dos livros, lia, depois recolocava o plástico e os punha de volta na prateleira. Ninguém desconfiava! Assim descobri Garcia Marquez, Humberto Eco, Kafka, Nitsche, Verissimos, João Ubaldo, Rubem Fonseca, Millôr e tantos outros que ainda nem entendia direito e nem há espaço para citar. Lendo aquelas maravilhas pensei que eu também teria coisas para contar e tive o sentimento de escrever as poucas coisas que um menino teria para escrever.

Havia no Louvre — a livraria, que hoje também poderia ser museu — uma máquina de escrever — que já é peça de museu. Papel ofício era o que não faltava e, tempo, eu teria entre um freguês e outro. Levei a máquina de escrever para trás de uma estante e passava horas e dias tlec-tlec-tlec no intervalo entre o atendimento aos clientes.

Certo dia estava eu a tlec-tlec-tlec lá no fundo da loja quando entrou uma senhorinha com seus cabelinhos brancos e uma sombrinha fechada na mão. Foi recebida com deferência por meu irmão mais velho. Na mesma hora saí correndo de meu escritório para atendê-la, mas meu irmão fez um gesto com a mão dizendo deixa que eu atendo. Fiquei feliz por poder voltar a minha crônica sem ter o raciocínio interrompido.

A simpática senhorinha já estava com seu pacote de folhas pautadas, lápis e outras coisas que não lembro, quando perguntou quem tanto teclava no fundo da loja.

— Meu irmão. — respondeu ele.

— E o que ele escreve? — quis saber ela.

— Não sei, nunca vi.

— Posso falar com ele? — pediu.

Então ela se encaminhou até o fundo da loja e me deu um Olá!

— O que estás escrevendo? — perguntou-me.

Totalmente sem jeito e intimidado, envergonhado de minha pretensão de escrever alguma coisa, respondi dispersivo:

— Ah, umas coisas.

Para meu desespero, na iminência de que alguém veria meus escritos secretos e pretensiosos, ela pediu:

— Posso ver?

Sem alternativa ante a simpatia, a amabilidade e a candura dessa mulher, peguei reticente algumas coisas que havia escrito e lhe entreguei. A senhorinha passou os olhos por minutos e pediu de um jeito que era impossível dizer não:

— Posso levar para ler melhor?

Como negar? Coloquei em um envelope pardo e entreguei a ela. Agradeceu, despediu-se e se foi.

Alguns dias depois ela retornou. Veio direto a mim, parou à minha frente, tirou meus escritos do envelope e me entregou. Estavam todos rabiscados a lápis, com sinais ininteligíveis, palavras riscadas e anotações nas margens do tipo: Não escreva whisky como é no original. Está correto, mas uísque fica mais coloquial. E explicou:

— Está muito bom. Fiz algumas anotações e correções. Mas deves continuar, continua escrevendo e lendo muito. — Falava assim, usando o tu como pronome.

Para desespero de vocês segui o conselho, continuei escrevendo. E lendo. Hoje, mesmo que isso não me renda nada, mesmo que seja difícil tentar alegrar a todos, mesmo que o politicamente correto me impeça de dizer um monte de coisas, mesmo que não seja bem feito, faço e o faço só porque gosto.

Porém, se vocês sentem-se constrangidos ao ver meus erros ou pensam que é um desperdício de tempo eu continuar tentando, não culpem a senhorinha, pois ela estava apenas exercendo sua função de Anjo. “Esse anjo” — como se refere a ela Lya Luft — passou pela minha vida — ainda está! — e me ensinou que passar conhecimento, ajudar, ser simples, dar-se, é o que faz as pessoas sentirem gratidão e nostalgia quando pensam em nós. Foi o que senti, gratidão e nostalgia, quando minha memória externa E.X.T. me fez pensar nessa senhorinha chamada Dona Mafalda Verissimo*.



*Quem foi Mafalda Verissimo: Mafalda Halfen Volpe Verissimo, viúva do escritor Erico Verissimo, mãe de Clarissa e do escritor (N.A.: também jornalista) e cronista Luís Fernando Verissimo, nasceu em Pelotas no dia 18 de junho de 1913, filha de Vicente e de Emma Halfen Volpe. Tinha nove anos quando a família se mudou para Cruz Alta e nesta cidade conheceu Érico, com quem se casou e passou a viver em Porto Alegre. Adendum posterior: esqueci de dizer que Dona Mafalda fora professora... típico de um anjo, não?

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